ACERCA DE GATOS.



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Em abril chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeño tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mais foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não l'he tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do "Público" ao domingo.

Eugénio de Andrade

AHHH, HOJE SINTO-ME ASSIM:



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(Suzanne Valadon, Erik Satie) ( Gymnopédie No. 1 - Erik Satie )

ELOGIO DOS CRÍTICOS
Não escolhi este tema por acaso, escolhi-o por me sentir reconhecido. Porque estou, de facto, tão reconhecido como reconhecível.
No ano passado fiz várias conferências sobre « A Inteligência e a Musicalidade nos Animais».
Hoje vou falar-vos d'«A Inteligência e a Musicalidade nos Críticos». O tema é quase o mesmo mas com modificações, bem entendido.
Amigos meus disseram-me que era um tema ingrato. Ingrato, porquê? Não há nele ingratidão nenhuma; pelo menos, eu não vejo onde nos agarrarmos para dizer isso. Vou pois fazer, sereno, o elogio dos críticos.
Não conhecemos suficientemente os críticos; ignoramos o que fizeram, o que são capazes de fazer.
Numa palavra, são tão desconhecidos como os animais, embora tenham, como eles, a sua utilidade. Sim.
Não são apenas os criadores da Arte Crítica, que é Mestra de Todas as Artes, mas os primeiros pensadores do mundo, os livres pensadores mundanos se assim podemos chamar-lhes.
De resto, foi um crítico quem posou para o Pensador de Rodin. Eu soube-o há quinze dias, o máximo três semanas, por um crítico. O que me deu prazer, muito prazer. Rodin tinha um fraco, um grande fraco pelos críticos… Os seus conselhos eram-lhe caros, muito caros, demasiado caros, acima de qualquer preço.
Há três espécies de críticos: os importantes; os que são menos; os que não são nada. As duas últimas espécies não existem: são todos importantes…

Erik Satie, in Memória de um Amnésico 
Selecção, tradução, cronologia e notas de Alberto Nunes Sampaio

FACIAL.



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Há três bruxas más em ti
zute a vassoura nas costas morre e nas ruas leva
o coração aberto, veias arrancadas às pernas
para salvar o dia
tudo igual ao que não sei

os comprimidos fora de prazo
cruzam o ar. Engole com o café à volta da mesa
senhor, senhor I'm better
when I'm bad diz na t-shirt da empregada

há a televisão ligada e animais para tudo no jardim
levantam voo os pássaros comuns
como grãos castanhos
e vozes uma a uma num turbilhão macio

vivo para coser a pele com cuidado.

João Almeida 
A formiga Argentina 
Averno, 2005

HOMENAGEM A 4 POETAS E 1 CINEASTA.



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Livra-me das tentações
de fugir ao fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo e
da vaidade e recorda-me que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair no pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
foda-se!
de morango.


Ana Paula Inácio

DANTESCO.



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Uma pessoa sabe que deus não existe quando chega de manhã ao pomar e vê aqueles calções ultra coloridos. Se deus existisse, as pereiras davam Ferrero Rochers e era só em Outubro. Nunca em Agosto.

I KNOW : I'M A LITTLE LATE. I KNOW : HE KNOWS.



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Ler Aqui.

LA MERDE, MONSIEUR.



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Quando eu era pequeno, punha-me a olhar para uma imagem de Deus Nosso Senhor de pé, em cima de uma nuvem que havia no Antigo Testamento, contado às crianças e ilustrado com gravuras de Gustavo Doré, que costumava folhear. Era um senhor bastante velho, com olhos, nariz, uma grande barba, e eu achava que , como tinha boca também devia comer. E, se comia, também devia ter intestinos. Mas ficava logo assustado com a ideia porque, embora a minha família fosse quase ateia, percebia bem a blasfémia que era pensar que Deus Nosso Senhor tinha intestinos. Sem a mínima preocupação teológica, com toda a espontaneidade, a criança que eu era então já compreendia, portanto, a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas, uma: ou o homem foi criado à imagem de Deus e Deus tem intestinos, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele. Os gnósticos antigos sentiam-no tão claramente como eu, aos cinco anos. Para acabar de uma vez por todas com este maldito problema, Valentino, grão-mestre da Gnose do século II, afirmava que Jesus «comia, bebia, mas não defecava». A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal. Deus ofereceu a liberdade ao homem, e portanto, pode admitir-se que ele não é responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela existência da merda incumbe inteiramente àquele que criou o homem e só a ele.»
 
Milan Kundera 
"A Insustentável Leveza Do Ser"
Publicações Dom Quixote, 2005

INOCENTE EM MAUS LENÇÓIS.



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Pegue-se num inocente, despoje-se, abuse-se dele, dê-se-lhe pontapés, mate-se, corte-se em bocados de igual grossura e meta-se na panela com bastante manteiga, sal, pimenta, especiarias, alhos e salsa picada. Depois de tudo bem refogado, acrescente-se um copo de vinho branco e um pouco de caldo. Quando o inocente começar a ferver, tire-se do lume e sirva-se em maus lençóis. Para comer discretamente enquanto se vai falando de outra pessoa qualquer.
Roland Topor  
A Cozinha Canibal 
Fenda, 2000 
Tradução de Ernesto Sampaio
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OS VOYEURS.