Madame Bovary # 3



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( Passagem )

Às vezes, ocorriam-lhe ideias estranhas:
- Quando baterem as doze - dizia-lhe - pensa em mim.
E se acaso confessava que não tinha pensado nela, desfazia-se em lamentos que  irremediavelmente terminavam com as eternas perguntas:
- Amas-me?
- Claro que sim!
- Muito?
- Muito.
- Nunca amaste nenhuma outra?
- ...Crês que era virgem quando me encontraste? - exclamava Rodolfo rindo. 
Emma começava a chorar e Rodolfo esforçava-se por consolá-la, alternando com  piadas os seus juramentos amorosos.
- Oh! É que amo-te - proseguia ela - Amo-te tanto que não poderia viver sem ti! Entendes? Às vezes, quando todas as fúrias de amor me afligem, tenho desejos de ver-te. Pergunto-me: "Onde estará? Quiçá com outras mulheres. Sorrir-lhes-á ao aproximar-se." Mas não, nenhuma te agrada, verdade? Há-as mais bonitas, mas eu sei amar melhor! Sou a tua escrava, a tua manceba! És o meu rei! O meu ídolo! És bom! És formoso! És inteligente! És forte! 
Tinha ouvido tantas vezes aquelas palavras que lhe pareciam carecer de originalidade. Emma parecia-se com todas as amantes. O encanto do que é novo, resvalando pouco a pouco como um vestido, deixava ao desnudo a eterna monotonia da paixão, que apresenta sempre as mesmas formas e linguagem. Aquele homem tão prático não acertava em distinguir a desigualdade de sentimentos submetidos a uma mesma linguagem. Porque uns lábios libertinos ou vendidos lhe haviam murmurado frases por mero estilismo, não acreditava, senão muito debilmente, no candor das palavras de Emma. Há que recusar - pensava - as frase exageradas que encobrem pensamentos medíocres.
Como se a plenitude da alma não se desdobrasse algumas vezes nas metáforas mais vãs, porque ninguém pode dar a exacta medida das suas necessidades, das duas ideias nem das suas dores pela palavra humana.  Mas com esta superioridade de crítica própria de quem se mostra privado de toda a classe de relações, Rodolfo encontrou naquele amor outros gozos que explorar. Julgou incómodo todo o pudor e começou a tratá-la sem cortesias, acabando por corrompê-la. Era uma amor idiota que privilegiava Rodolfo em admiração e enchia Emma de voluptuosidade  e arrebatamento. A sua alma submergia naquela embriaguez, afogando-se, como o Duque de Clarence no seu tonel de mostro. 
Em consequência das suas práticas amorosas, Madame Bovary mudara de modos. O seu olhar tornou-se mais atrevido e a sua conversação mais livre e, inclusive, cometeu a inconveniência de passear-se pelas ruas de braço dado com Rodolfo, e de cigarrilha na boca, como que a desafiar o mundo.


(...)


 « Não te esquecerei nunca, acredita. Sempre sentirei por ti um carinho profundo, mas, um dia qualquer, mais tarde ou mais cedo, este imenso carinho - tal é o destino das coisas humanas - sem dúvida diminuirá. O cansaço apodera-se de nós e, quem sabe, se não iria eu ter a terrível dor de presenciar os teus lamentos e de comparti-los por tê-los causado? Culpa tão somente a fatalidade.»

- Esta palavra sempre produz efeito - disse para si mesmo.
Releu a carta e pareceu-lhe excelente. 
- "Pobrezinha", vai pensar que sou mais insensível que uma roca. Umas lagrimitas em cima da carta produziriam um efeito magnífico. Mas eu não posso chorar, a culpa não é minha!
Então, enchendo um copo de água, molhou nele o dedo e deixou cair uma grossa gota, que esboçou sobre a tinta uma pálida mancha. Acostou-se e fumou três cachimbos antes de se ir deitar.


Isabelle Huppert como Emma Bovary e Cristophe Malavoy como Rodolfo
em Madame Bovary (1991), de Claude Chabrol

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