More Die Of Heartbreak



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More Die Of Heartbreak 

Morrem mais de mágoa do que por radiações nucleares,
mas cá nos entretemos nós com activismos piolhosos,
enquanto isso, em muitos lares, escrever nos vidros
continua a ser a única separação entre a vida e a morte,
carta que salva uma mão de ferir outra ou de se perder
neste mal-estar perante as luzes ou uma fotografia antiga.

António Ramos Pereira
(excerto)

O Peso da Sombra.



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Inventarei o dia onde contigo
e o Outono corra pelas ruas.
A luz que pisamos é tão perfeita
que não pode morrer, como não morre
o brilho do olhar que te viu despir. 

Eugénio de Andrade
" Poesia ", 2000 







O meu riso vai alto.



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O meu riso vai alto,
Mais alto que os chapéus dos cardeais
Mais alto que a esperança
Os meus seios riem quando o sol brilha,
Apesar dos meus fatos apesar do meu noivo.
Feia que sou, sou feliz.
Deus e os vampiros
Amam-me.

Joyce Mansour
Trad. Mário Cesariny
Rosa do Mundo : 2001 Poemas Para o Futuro
Assírio & Alvim, 2001


Fluxo Menstrual.



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A tal assembleia popular dos indignados fez-me lembrar uma amiga da minha irmã que vive numa comunidade hippie perto do Cercal do Alentejo. Durante a adolescência, não era diferente de nós, sentia-se de esquerda, era de esquerda. Era a esquerda que cuidava dos jovens, dos pobres, dos excluídos, das minorias. Uma pessoa tinha de ser de esquerda porque a defesa de um núcleo de direitos e valores parecia pertencer em exclusivo à esquerda. Depois, numa altura em que toda a gente, uns mais, outros menos, guinou à direita, - uma pessoa arranja um emprego, casa, tem filhos, que diabo, é a vida que nos torna mais conservadores, - a amiga da minha irmã não guinou nem à esquerda, nem à direita. Pura e simplesmente, saiu do caminho. Largou o emprego, pegou nas saias compridas e nas alpercatas, e foi viver para a tal comunidade hippie: é naturista, anarquista, ecológica, é pelo poli amor, tem horror a antibióticos e não vacina o filho. Até aí nada de mal. Cada um vive como quer e se há mulheres que acham que podem viver sem pensos higiénicos, empapando o fluxo menstrual em paninhos de algodão, isso é lá com elas. O problema é que a tal amiga da minha irmã e o namorado, um hippie alemão, chamado Rainbow, viviam de um subsídio de juventude que o exemplar estado alemão atribuía ao dito. Ou seja, a indignação e rebeldia do casal, não era sustentada pelos próprios, que passavam o dia em contemplações espúrias, era, isso sim, suportada pelo sistema que tanto desprezavam. Ao que parece, a amiga da minha irmã agora dá aulas aos velhinhos das aldeias do Cercal do Alentejo (desconheço que competências tem para fazê-lo) e é paga pela autarquia local que quer os seus seniores – é como agora chamam aos velhos – ocupados.


Nos dias que correm todos sentimos indignação, mas, a mim, aborrece-me que a minha indignação possa ser confundida com a indignação da amiga da minha irmã e de todos aqueles que, como ela, criticam o sistema, mas o que mais desejam é viver amparados por ele. Chateia-me que a minha indignação e a de muitos outros, por dispensar o folclore próprio da esquerda extremista, dos cartazes mal escritos, dos urros gratuitos ditos por mulheres mal depiladas, pouco valha e que a indignação da geração à rasca, dos indignados, dos acampados, mereça tanto aconchego.


Ana de Amsterdam,
a grande.

Amanhecer.



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Que se faz na hora de morrer? Volta-se
a cara contra a parede?
Agarra-se pelos ombros o que está perto e ouve?
Deita-se cada um a correr, como o que tem
as roupas incendiadas, para chegar ao fim?

Qual é o rito desta cerimónia?
Quem vela a agonia? Quem puxa o lençol?
Quem afasta o espelho por embaciar?
Porque a esta hora não há mãe nem parentes.

Já não há soluço. Nada, mais que um silêncio atroz.
Todos são uma face atenta, incrédula
De homem da outra margem.

Porque o que sucede não é verdade.


Rosario Castellanos
Rosa do Mundo - 2001 Poemas Para O Futuro
Assírio & Alvim
2001


(poemas de todos os tempos,
de todos os espaços
e de todos os lugares.)


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I know a ghost can walk through the walls
Yet I am just a man, still learning how to fall ...

I am what I am
And what I am is who I am
I know what I know
And all I know is that I fell
If only I could walk through the walls
Then maybe I would tell you who I was
Yet I am just a man still learning how to fall
Yet I am just a man still learning how to fall...

O sentimento de um ocidental.



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E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!


do poema "Horas Mortas"
Cesário Verde 



Lunchtime Atop a Skyscraper, 1932, Charles C. Ebbets

O osso da pila



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O osso da pila*
para o eduardo pires

pensávamos que se partíssemos o
osso da pila morríamos num instante sem
mais crescer, sem casar

pensávamos que o osso da pila era
o mais impressionante e que talvez fosse
articulado e que seria fundamental para crescer e para casar

pensávamos que faríamos filhos à
custa do osso da pila e que não os faríamos se
o partíssemos nem cresceríamos e nem poderíamos casar

pensávamos que casaríamos um dia, aterrorizados por
uma infância ansiosa, com as mãos no osso da pila para
o proteger, razão também pela qual achávamos ter podido
crescer e casar

pensávamos que o osso da pila justificava crescer e casar

não casámos, não partimos o osso da pila, crescemos,
devíamos ter morrido na infância, num instante




Valter Hugo Mãe
o inimigo cá dentro 
Volume contabilidade, Poesia 1996-2010 
Alfaguara, 2010

Cesário - desejo de sofrer



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Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer


Cesário Verde

Fire, walk with me.



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Em caso de fogo, a primeira coisa que se deve fazer é perder a cabeça. O pior inimigo do fogo é a cabeça. Começa-se por querer sair dali a qualquer preço, não olhar a nada, esquecer tudo, desaparecer, mesmo que seja para o interior de si próprio, onde por sinal há muito mais fogos do que no litoral.

Cento e trinta e cinco por cento das vítimas do fogo são homens. O restante são mulheres e crianças e nenhuma delas abandonou a cabeça. Embora nenhuma vítima tenha sequer tido tempo para pensar que poderia estar noutro local, como no interior ou no litoral de si próprio, todas foram encontradas agarradas às coisas mais incontroláveis, como uma beata, uma bóia ou uma recordação.

António Pocinho 
Os pés frios dentro da cabeça
 Fenda, 1999

Mercado Velho.



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Hoje vou para o mercado velho expor o meu corpo em pedaços
cada um bem identificado por uma etiqueta com nome e valor
tenho esperança de realizar uma boa transacção há tanta coisa lá
para trocar pelos pedaços ainda em bom estado deste meu corpo
inteiro não tem muita utilidade mas assim a retalho é precioso
em particular a mão direita o crânio o sexo o coração
oxalá ninguém queira comprar por atacado todos os pedaços
é que não sei onde guardei as instruções de montagem.


Carlos Alberto Machado
Talismã
 Assírio & Alvim, Lisboa, 2004
 


Belo programa, meu bom senhor.



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Excelentíssima madame, eis que primeiro vou descrever o seu esplendoroso vestido e logo a seguir, sim, a despirei com toda a ansiedade possível.
Belo programa, meu bom senhor. Mas essa primeira parte, não poderá saltar-se?
Excelentíssima madame, eu sou um escritor, não sou um fornicador.
Oh, meu bom senhor, que pena.

Gonçalo M. Tavares
Flaubert
Biblioteca, Campo das Letras (2004)

O meu all time favorite (até à data), aqui numa versão "audiovisionada", aliás, várias versões, que lhe fazem todo o jus.



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Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra



Mário Cesariny
1923-2006


Nobilíssima Visão
Mário Cesariny
Assírio & Alvim

What we most want is bad for us, we know.



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Cults | USA
OUVIR facebook | myspace | last fm











(...)
My mother told me you'll reap what you sow
what you most want is bad for me you know 


(...)
Late in the morning I wake
all alone, I'm crying
crying for all of the people who love me so
but when we get sad we know where to go
what we most want is bad for us we know

 
[ flirtation
drug use
and adultery ]

imeet Van Gogh.



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(Conversações de Domingo à tarde. Sem  a gata. Sem piercing. )


Primeiro quarto em Lisboa.



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Primeiro quarto em Lisboa

onde vivi oito meses: da janela
sobre o beco via o tráfego nocturno
entre muros com recados e desenhos
obscenos, sob o castigo da música
de um bar entretanto extinto.
O lugar era assombrado

pelo cheiro da doença
(...* grave supressão de minha
autoria e vontade *...)
no meu último dia
deu-me um livro do Eugénio
que mantinha à cabeceira, esquecido
por outro hóspede "dado às letras"
como eu. Penso muitas vezes nele
e naqueles que lá moravam

em plenos anos noventa, gente
que eu só encontrava a desoras,
na cozinha, à volta do frigorífico
de serventia comum. Era no tempo
dos versos que levavam a outras
praças — chegava tarde do Bairro,
o torpor entre as paredes

incitava à procura das palavras
de um poema que me ajudasse
a mudar. E quando me lembro disso
penso no muito que quis encontrar
uma saída, e nas portas que fechei
e nas esperanças que traí desde então
na minha vida.


Rui Pires Cabral
in Oráculos de Cabeceira,
Averno

From Portugal, with love.



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" WE TRUST é André Tentugal. O jovem realizador português (que já trabalhou com bandas como os X-Wife, Mind da Gap ou Teratron), dá espaço a uma outra faceta: a de músico.

A primeira música, "Time (Better Not Stop)", é apresentada com um vídeo realizado pelo sueco Rickard Bengtsson. Grande linha de baixo, um minimalismo com qualquer coisa de post rock e recurso a voocoder nas vocalizações são as bases de exploração de um tema que deixa muita expectativa para o disco. Podem fazer o download do single aqui em www.wetrust.co "

Resumo explicativo de uma vida passada a tentar explicar.



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Van Gogh, Pina, Gatos, Mondrian.



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Há muitos gatos pela casa do poeta. Como também os há na poesia de Manuel António Pina. Poemas que são como gatos: insinuantes e discretos mas simultaneamente, aos poucos, ocupantes quase invisíveis de um território cada vez mais vasto. Em cada gato há outro gato, escreve. Tal como em cada poema há outro poema, sugere o poeta. Em mais de trinta anos de actividade literária, Manuel António Pina tem-se desdobrado entre a poesia e a literatura infantil. Uma e a mesma coisa, assegura o poeta com aquele seu sorriso sempre na fronteira entre a candura e a ironia. Com ele e com as palavras está-se em boa companhia.
 A introduzir uma entrevista de 2006 à Revista LER, dirigida por  Carlos Vaz Marques. Para ler na íntegra aqui.



Van Gogh Mondrian
Uma vez um anjo apaixonou-se por van gogh e veio vê-lo
van gogh pintou-o naquela cadeira, te acuerdas federico bajo la tierra?
o anjo depois foi-se embora e van gogh ficou com o tabaco estragado

mondrian também tinha um anjo mas o dele era mau
não se importava com coisa nenhuma batia-lhe nos olhos
Manuel António Pina, in "Poesia Reunida", 2001

II. Democracia.



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Sou um democrata até ao ponto de amar o sol livre nos homens
e um aristocrata até ao ponto de odiar as pessoas néscias e possessivas.

Amo o sol em qualquer homem
quando o vejo na sua fronte
límpido e sem temor, mesmo que seja pequeno.

Mas quando vejo aqueles homens cinzentos e bem sucedidos
tão hediondos e semelhantes a cadáveres, totalmente sem sol,
como escravos gordos e bem sucedidos, meneando-se mecanicamente,
então sou mais que radical e quero servir-me da guilhotina.

E quando vejo os homens que trabalham
pálidos e miseráveis como insectos, apressados
e vivendo como piolhos, com pouco dinheiro
e sem nunca prosperar,
então desejo, como Tibério, que a multidão tivesse apenas uma cabeça
para que eu a pudesse decepar.

Sinto que as pessoas para quem o sol não existe
não deviam viver.

D.H. Lawrence
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães
in Os animais evangélicos e outros poemas, Relógio D'Água
Via O Melhor Amigo

I. Poética.



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Todos temos um amigo morto
e um amor que se foi, ao amanhecer,
e nos deixou a luz feita em pedaços.

Um pai e uma mãe que se esgotam,
uma foto em Lisboa, um cão tonto,
dois ou três livros, quatro ou cinco quadros.

Todos temos uma rua escura,
uma avenida que nos reconhece,
uma árvore velha e um antigo pátio.

E a certeza de que tanto é nada,
a desgraça de ser o que perdemos,
a sorte de viver para contá-lo.


Ángel Mendoza
Tradução de Inês Dias
in Cercanías, 2002
Via O Melhor Amigo

Obsolescência Programada.



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Comprar, tirar, comprar from Dinero Libre on Vimeo.


Baterias que "morrem" com apenas 18 meses de uso, impressoras que bloqueiam ao alcançar um determinado número de impressões, lâmpadas que se fundem ao atingir mil horas… Porque é que será que, apesar dos avanços tecnológicos, os produtos de consumo tendem a durar cada vez menos?

Filmado na Catalunha, França, Alemanha, EUA e Gana, o documentário "Comprar, descartar, comprar" faz uma viagem através da história de uma prática empresarial que consiste na redução deliberada da vida útil de um produto para incrementar o seu consumo pois, como foi publicado em 1928 numa revista de publicidade dos EUA, "um produto que não se gasta é uma tragédia para os negócios".

O documentário, dirigido por Cosima Dannoritzer e co-produzido pela TVE espanhola, é o resultado de 3 anos de pesquisa. Fazendo uso de imagens de arquivo pouco conhecidas, fornece provas documentadas e mostra as desastrosas consequências ambientais provocadas por esta prática. Apresenta ainda vários exemplos do espírito de resistência que está a crescer entre os consumidores e a análise e opinião de economistas, designers e intelectuais que propõem alternativas para salvar a economia e o ambiente.


Uma lâmpada na origem da obsolescência programada
Tomas Edison fez a sua 1ª lâmpada em 1881. Durava 1500 horas. Em 1911, um anúncio na imprensa espanhola destacou os benefícios de uma marca de lâmpadas com um certificado de duração de 2500 horas.

Contudo, tal como é revelado no documentário, em 1924 um cartazque reuniu os principais fabricantes na Europa e nos EUA negociou de forma a limitar a vida útil de uma lâmpada eléctrica para 1000 horas.

O cartel foi chamado de "Phoebus" e oficialmente nunca existiu, mas em "Comprar, descartar, comprar" é mostrado este ponto de partida da obsolescência programada, que hoje é aplicada em produtos electrónicos de última geração, como impressoras e iPods, ou na indústria têxtil.


Consumidores rebeldes na era da Internet
Através da história da obsolescência programada, o documentário descreve o percurso da economia nos últimos cem anos e mostra um facto interessante: a mudança de atitude dos consumidores, através do uso das redes sociais e da Internet. Os casos dos irmãos Neistat, do programador de computador Vitaly Kiselev e do catalão Marcos López demonstram isto.


África, o aterro electrónico dos países desenvolvidos
Como vemos nesta pesquisa, países como o Gana estão a tornar-se a lixeira electrónica dos países desenvolvidos. Periodicamente, centenas de contentores chegam cheios de resíduos com o rótulo de “materiais em segunda mão” para, eventualmente, serem despejados em rios ou campos onde crianças brincam...

Além da denúncia, o documentário dá visibilidade aos empresários que implementam novos modelos de negócio e ouve as alternativas propostas, como por exemplo a de Serge Latouche, que fala sobre a importância de se empreender a revolução do “decrescimento”, ou seja, a redução do consumo e da produção de forma a economizar tempo e desenvolver outras formas de riqueza, como a amizade ou o conhecimento, que não se esgotam ao serem usados.

Viver sempre também cansa.



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Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...


José Gomes Ferreira,
in "A Poesia da «Presença»"
Cotovia, 2003

VIA O Café Dos Loucos

Vivian Maier.



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Who is
Vivian Maier ?
vivianmaierprints.com
 











How to build a Wonderland.



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The Making Of
Wonderland
by Kristy Mitchell


[ BEFORE & AFTER ]


[ BEFORE & AFTER ]

[ BEFORE & AFTER ]

[ BEFORE & AFTER ]

[ BEFORE & AFTER ]

 [ BEFORE & AFTER ]


[ BEFORE & AFTER ]

Conto Público.



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.
Conto Público


#1
Dois lutadores de sumo. Treinaram vinte anos. O seu peso enorme, os rosto ameaçadoramente contidos. Imóveis, os dois corpos. Prontos para a acção.
Gonçalo M. Tavares

#2
Cada um visava o outro antecipando na sua mente cada movimento, Olhos nos olhos, o combate psicológico começara semanas antes, quando o de porte menos imperial desafiara o campeão dos campeões.
Kimatuto encarou o adversário como um tigre encara a sua presa. Na sua mente surgiam imagens de outros combates. Ainda não era hoje que o seu percurso de invencibilidade iria terminar. Era e continuaria a ser o rei do tapete.
António Ruivo, Leiria

#3
Continuaria a ser o rei do tapete. Repetia incessantemente para si mesmo. Continuaria a ser o rei do tapete. Repetia. Continuaria a ser o rei do tapete. E, contudo, nem um músculo se mexia. Continuaria a ser o rei do tapete mesmo apesar de o forte embate que sofreu do seu adversário quase o ter atirado para fora. Continuaria a ser o rei do tapete mas precisava mesmo de reagir porque o corpo insistia em não se mexer. Era a primeira vez que tal lhe acontecia. Era a primeira vez que lutava desde a morte daquele estranho na sua rua. Onde não reagira. Quando o devia ter feito.
João Tibério, Queluz

#4
A multidão vociferava ao longe o eco de uma multidão. Na sua cabeça a imagem do homem a esvair-se em sangue enquanto tentava dizer-lhe alguma coisa que não conseguia entender. Aproximara o ouvido aos seus lábios ensanguentados mas a única coisa que conseguira perceber era algo parecido com "procurem o dezanove". Não decifrara de imediato. Só no escuro da noite, dando voltas na cama na tentativa de dormir, conseguira juntar os sons silabados, omissos, até obter aquele estranho apelo. E igualmente o apelo dos seus olhos, numa névoa a esconder um último brilho antes de se apagar. Morrera nos seus braços e compreendera a suave doçura dum corpo acabado de morrer. Uma imperceptível desistência.
Paulo Gonçalves, Porto

#5
O momento do nascimento e o momento da morte. Dois momentos de ruptura que se ligam e nos ligam definitivamente. Ele morrera nos seus braços e por isso agora passaria a fazer parte de si. Como um filho. Tentara deixar de pensar nisso mas não conseguia. Sentia-se agora responsável por ele. Irremediavelmente. E não desistiria enquanto não descobrisse o que era "o dezanove". Mesmo que se lhe esgotassem os únicos momentos de descanso de que usufruía, que eram os que passava à noite, na verdade já de madrugada, junto da única pessoa que partilhava com ele o calor da sua existência.
Céu Guitart, Azeitão

#6
Esta fracção de pensamento quebrou-se quando subitamente sentiu as mãos do adversário no mawashi e os pés a flutuar. O sal que espalhou pelo dohyō, os cânticos do gyōji, o espaço circular violentamente contido que resumia a sua existência física e espiritual há 20 anos, repetiu nessa noite com a intensidade consciente de algo que se faz pela última e derradeira vez. Com as pregas profundas da sua obesidade comprimidas às do opositor, sentiu-se levar violentamente para fora do recinto sagrado. Caiu humilhado, e sem levantar a cabeça pensou: "Acabou. E agora?...", e um número voltou-lhe à memória... "dezanove"
Guilherme Vaz, Porto

#7
Na sua boca, sentia o amargo da derrota. Todos os feitos anteriores seriam rapidamente esquecidos. A fama, efémera, não passaria de uma ténue recordação de um passado glorioso. Um braço repousou sobre o seu ombro. Olhou para trás e viu uma figura familiar. Franzino, um homem de dentes desalinhados, amarelecidos pela sucessão de cigarros que aspirava durante o dia, sussurrou-lhe: "Estou contigo. Não cairás sozinho." O seu primeiro treinador, o homem que apesar da sua pobreza o retirou de um orfanato e acreditou nas suas potencialidades era, para ele, mais que um pai. Fora o principal responsável pela sua ascensão meteórica. No auge, foi renegado por ordens do agente que lhe prometeu fama e fortuna. Pashi saiu do anonimato da multidão para restaurar uma amizade perdida, um perdão concentrado num gesto. Kuamu, o promotor do combate, conversava com o árbritro. Secretamente, entregou-lhe um envelope, sem remetente ou destinatário, apenas dois algarismos: 1 e 9.
Manuel Lopes, Lisboa 

#8
Shinozuka atravessava a cidade, atribulada e feérica como sempre. Não parara sequer para uma refeição rápida, tinha urgência em chegar a casa. Um nervoso miudinho percorria o seu corpo magro e endurecido por anos de disciplina e rigor. Tinha urgência em chegar a casa. No bolso do casaco aquele envelope subtilmente entregue por Kuamu fervia de inquietação e destilava mistério. Depois do combate, das cerimónias e dos discursos, ainda se sentiu tentado a abri-lo e a acabar com a curiosidade que o consumia. Conteve-se. Entrava em casa e, sem cumprimentar a mulher, fechou-se no seu pequeno e despojado escritório. Quando abriu o envelope, a surpresa não se dissipou: um bilhete de avião, para o dia seguinte. O destino ficava a 19.000 Km de distância.
Ricardo Moura Pais, Arraiolos

#9
Um amargo de boca. Como justificar a partida apressada, a bagagem arrumada à pressa, a ansiedade latente. Ao mesmo tempo uma vontade indócil de perceber. As quase 27 horas de distância, as escalas na Europa, as esperas e as dúvidas, tinham um destino. Como pronunciar esta palavra tão estranha, já incrustada no seu pensamento: Flo-ria-nó-polis.
Ricardo Moura Pais, Arraiolos

#10
"Tudo diferente", pensava Shinozuka. O tempo quente e húmido era o que restava do mundo de onde viera há 27 horas e onde havia estado todas as outras horas antes dessas. Conseguira justificar a sua ausência com um convite de última hora para arbitrar um torneio internacional. E ali estava, num país que não conhecia para entregar um envelope a um homem que nunca vira: Aito Sato. Dele apenas sabia que foi um dos kyodai de uma importante família Yakuza, entretanto desaparecido. Recebera a carta de Kuamu que apenas lhe disse: "Depois disto a tua dívida está paga". Sato, Kuamu e ele. Todos intermediários. Operários de uma linha de produção, responsáveis por apertar um parafuso de uma peça que nunca viriam a conhecer. A inquietação voltou. Num impulso abriu o envelope. Nele encontrou duas coisas: uma carta onde se podia ler "Obrigado" e uma chave com uma placa e um número, 19.
Nuno Grosso, Lisboa

#11
Entretanto resolveu parar para pensar. Esta história parecia-lhe muito mal contada e demasiado rocambolesca para quem passa a vida a correr atrás do normal. O número 19 sempre tinha sido o seu favorito, mas jamais imaginaria ter de percorrer meio mundo à procura de algo que cada vez lhe parecia mais irreal... Parecia-lhe que estava na história errada. Se calhar era tudo um lapso e a ele apenas competia provar que estava a meio de um engano. Por que razão iria atrás de um número apenas porque alguém recusa aceitar que, por vezes, o inevitável é mesmo inevitável? Ele sempre fora uma pessoa demasiado pragmática para perder tempo com ilusões...
Ally Fontana, Lisboa

#12
Shinozuka aproximou-se do balcão da recepção. "Ligue-me ao quarto 19". Um momento de espera, percorrendo todas as vozes da sua vida, todas aquelas que poderiam estar do outro lado da linha. "Sim?" Um momento de espera. "Sou eu..." Um momento de espera. "Vou descer. Encontro-te no bar do hotel". Desligou. Pediu uma bebida no bar e sentou-se. Olhou à sua volta, tudo lhe parecia estranho. Nunca poderia ter imaginado que acabaria sentado no bar de um hotel à espera de uma pessoa. O número dezanove desenhou-se na sua mente e aí permaneceu até desvanecer com um toque no ombro, a sombra de alguém atrás de si. Virou-se.
António Barbosa, Covilhã 

#13
O toque no ombro foi leve, sem tensões, amigável. Uma mulher? Linda, traços nitidamente japoneses. Cabelos negros e compridos, maravilhosamente lisos e brilhantes.
– Ohayou Gozaimasu, cantou a bela.
Shinozuka não reagiu: a boca aberta, secou-lhe. Ela sentou-se à sua frente e fez de seguida um sinal para o rapaz atrás do balcão do bar. Pediu num português perfeito: um sumo de maracujá. Shinozuka continuava mudo.
– Outro para o meu amigo.
Em cima da mesa, a bela pousou a sua bolsa pequena e a chave com um pesado porta-chaves em madeira exibindo o número 19.
Maria do Céu Mota, Santa Maria da Feria

#14
Enquanto esperava pela bebida, ela permaneceu silenciosa. Avaliou-o com o olhar, mas a sua expressão não traiu minimamente os seus pensamentos. Shinozuka começou a sentir-se desconfortável, sem saber se devia fingir-se distraído ou se devia olhá-la também nos olhos... nunca tivera muito jeito para esses jogos. Finalmente, para seu alívio, o empregado trouxe a bebida. Ela pegou no copo... voltou a pousá-lo com impaciência e, chegando-se à frente, disse-lhe baixinho, com voz ríspida:
– 35? Eu sou a 19, entrega-me a encomenda.
Ana Borges, Torres Vedras

#15
Shinozuka endireitou-se na cadeira. A roupa pesava-lhe e uma sensação de mal-estar tomava conta de si. Considerara adequado vestir o seu melhor fato para este encontro - afinal, não sabia o que ira encontrar.
No entanto, o calor daquela cidade atrasava-lhe a respiração, tornava-a mais pesada, e sentia-se cada vez mais fraco. Olhou o tecto, observou atentamente a ventoinha que, por cima de si, rodava as suas pás. No entanto, era como se todo o ar se tivesse ido.
Ohayou observava-o expectante, franzindo ligeiramente o sobrolho. Reiterou:
- Entrega-me a encomenda.
Shinozuka levou a mãe ao bolso interior do casaco, observou a bela mulher sentada à sua frente e estendeu-lhe o envelope.
Joana Loureiro, Lisboa

#16
Aguardo esta carta há tanto tempo! Dela depende o meu futuro e o de toda a minha família.
Pegou lentamente no copo e sorveu o sumo até à última gota. Fitou Shinozuka por alguns segundos e começou a ler a carta. Shinozuka reclinou-se na cadeira e, por delicadeza, fechou os olhos.
Um estampido breve e seco ecoou. Ohayou, deitada sobre o lado direito, jazia no chão do hotel. Um fio de sangue lento, espesso, corria pelo mármore branco da recepção.
José António Quelhas Lima, São Mamede de Infesta

#17
O metal dos olhos de Shinozuka diluiu-se na enchente descontrolada que lhe afogou as janelas da alma. O cérebro ordenava, mas a voz não queria embalar aquele sofrimento que corria, e de repente, invísivel, tomava já conta de tudo. O peito de Ohayou, quedo, prenunciava que nunca mais um sorriso de anjo encantaria ou faria qualquer outra coisa na forma como os minutos corriam naquele local.
Um gato esquelético cruzou a esquina daquele corredor, entrou na sala, e deitou-se junto ao corpo recém-partido. Parecia suspirar pela concretização de uma premonição. Ao lado, o corpo sorria, muito brevemente, mas só isso. Estava morto.
Shinozuka continuava mudo. Ao longe ouvia-se uma rouca sirene da polícia, que gritava já no preciso momento em que começou a chover. Nada havia para dizer a ninguém. Um homem louco, um animal indiferente, e coisas por explicar, dariam trabalho a quem quisesse perceber a sequência dos acontecimentos.
Pedro Candeias, Lisboa 

#18
O sopro da sirene está mais próximo. De súbito, Shinozuka, que ficara em 10 segundos sem mover um músculo, sentiu-se expandir numa apanha de ar aparatosa.
O choque parecia multiplicar-se pelo número de gotas da tempestade que se abatia lá fora. Ainda assim Shinozuka está consciente e disperso. O som das sirenes cessou. Em seu lugar surge um flash intermitente, silencioso: azul e vermelho. A sala de luz morna é agora vermelha.
Shinozuka é esbofeteado um par de vezes pelas ofuscantes luzes, fita o balcão vermelho, a chave 19 e a bolsa de Ohayou, azul pega na carteira, vermelho sai pelas traseiras. Pálido e perdido desata a bolsa, lá dentro um leitor de música e um bilhete para 35.000 km de distância. Junto à janela.
Filipe Corrugado, Porto

#19
"35", repetia incessantemente enquanto o seu passo apressado e o seu volumoso corpo se evidenciavam cada vez mais no olhar dos que o viam passar.
No seu caminhar determinado não se desenhava a certeza de um destino. Fugia e como um animal ferido procurava apenas uma solidão onde pudesse reconstruir uma ordem, um sentido do que lhe parecia ser cada vez mais enigmático.
"35", fora assim que Ohayou o interpelera. Lembrava-se agora do leitor de música da bela Ohayou e levou a mão ao bolso do seu casaco para se certificar de que o levava com ele.
Num acto súbito entrou numa velha pensão e pronunciou uma só palavra quando com largo sorriso um velho homem em camisa de alças lhe dava as boas-vindas e se dispunha à conversação. "Room", disse Shinozuka, olhando para a parede desmaiada onde estavam as chaves dos quartos.
Pedro Marques, Paris

#20
Abandonou o corpo à cama, ressumando exaustão e desespero corrosivo. Percorreu o tecto com o olhar vago, perdido na memória dos últimos acontecimentos, acabando por cerrar os olhos, acossados pela ausência de horas de sono, esgotados de nada vislumbrar. O cansaço era, sem dúvida, seu adversário e não favorecera o desempenho da memória. Ainda assim, tentou, em hercúleo empenho, ligar pormenores que o conduzissem à decifração do complexo enigma. Ansiava representar, novamente, o papel de árbitro activo e competente, como nunca o deixara de ser em todos os dohyō, de outros combates. Mas esta era uma luta pouco objectiva, revestida de inúmeras sinuosidades, progressivamente obscura e intrincada.
"Para além do inverosímil existe, certamente, uma explicação", pensou em jeito de próprio encorajamento. É interrompido nos seus pensamentos pelo som grave do telefone. Do outro lado, uma voz masculina faz cair, pausadamente, uma nova imposição.
Maria do Rosário Colaço, Lisboa

#21
Demasiado cansado para reagir, Shinozuka escuta a voz séria e metálica que se faz ouvir do outro lado do telefone. À medida que as palavras se soltam, em tom incisivo e peremptório, sente-se invadido por um temor e uma sensação de mal-estar percorre todo o seu corpo e mente.
O som estridente que, segundos antes, o despertara dos pensamentos mais profundos e o enervara sobejamente, cedeu lugar àquela voz, sem rosto, anónima e que lhe provocava um calafrio inexplicável.
Do outro lado, a voz masculina ordena-lhe, friamente, a devolução imediata do leitor de música da bela Ohayou, que trouxera consigo na fuga desesperada que encetara minutos antes.
Como podia a voz saber que guardara o objecto pessoal de Ohayou?, questionava-se entre um misto de surpresa e receio. Quem era aquela gente que parecia saber todos os seus movimentos? O que fazer? Como conseguir escapar aos olhos invisíveis...
Luz Câmara, Coimbra 

#22
Como conseguir escapar desta teia? Como se deixou transformar nesta marioneta completamente manipulada?
Sai à rua. Sente-se espiado em todos os seus movimentos. Olha freneticamente para trás, para os lados, para trás, olha nos olhos de quem passa como se todos estivessem envolvidos, procurando também um sinal... sem saber de quê!
Desesperado e exausto deixa-se cair ao virar de uma esquina, como se ali ficasse invisível do resto do mundo. Lembra-se da sua bela mulher, precisava do seu olhar que o acalmava e lhe dava ao mesmo tempo toda a tranquilidade e força do mundo, do seu abraço apertado mas terno, de sentir o seu cheiro doce e o calor do seu corpo, do seu beijo... Onde estaria ela, que estaria a fazer?
Brutalmente arrancado aos seus pensamentos e ao chão, foi empurrado para dentro de uma carrinha fechada que se pôs de imediato em movimento: "ONDE ESTÁ O LEITOR DA OHAYOU?!"
Raul Galveia, Coruche

#23
O seu coração palpitava e agitava-se no seu peito num batimento descompassado, a sua cabeça latejava e o seu corpo debatia-se por uma posição reconfortante. Mas tudo se assemelhava a estar bem longe de ser reconfortante: a carrinha tinha um cheiro insuportável a enxofre, as cordas que lhe amarravam os tornozelos estavam demasiado apertadas e estar vendado impossibilitava-lhe avaliar fosse o que fosse. Já passara uma hora desde o seu infortúnio. As perguntas ressaltavam-lhe na cabeça imparavelmente; estava num estado irremediável de incompreensão - parecia-lhe um grande puzzle no qual não conseguia juntar as peças. A sua linha de pensamento foi interrompida por um brusco abanão da carrinha. Teriam parado?
Joana Vaz, Sintra

#24
Ouvido atento, músculos retesados, expectante. Sim, tinham parado. A porta da carrinha é aberta e o cheiro a enxofre mistura-se com o odor adocidado do campo, um cheiro a terra húmida, a terra lavada pela chuva que tinha caído. Onde estaria? Sente que lhe retiram a venda. Abre os olhos numa mistura de luz e sombra. Olha à volta o descampado. Não havia ninguém, tudo era silêncio. As cordas, à volta dos tornozelos, pareciam cada vez mais e mais apertadas. E os pés deixaram de existir. O seu corpo é uma amálgama de dor. A cabeça rodopia numa tontura, numa interrogação. O que tinha acontecido? Quem tinha matado Ohayou? Porquê? Quem era ela, afinal? Um murro enorme atinge-o em pleno rosto. E outro, e outro ainda. E o sangue, devagar, escorre por entre a pele lívida de espanto. Uma voz rouca, soturna, pergunta:
- Quem és? Diz, quem és tu? Por que mataste Ohayou?
Respira...
Maria Teresa de Jesus dos Santos, Massamá

#25
De súbito, o homem parou; levou a mão direita ao bolso - uma carta. Entregou-a a Shinozuka. Uma carta fechada. Shinozuka tinha medo, mas mesmo assim estava curioso. Uma luta rápida: curiosidade/medo. Ganhou a curiosidade. Mas isto foi na sua cabeça, cá fora ele não se mexeu. Esperava uma indicação concreta para abrir a carta - ou um soco. Não veio soco.
Gonçalo M. Tavares 

#26
No branco imaculado da carta, uma pinga do seu sangue. Do sangue que derramara nem ele sabia porquê. O lugar e a altura não eram as propícias a um raciocínio desanuviado. E os tambores que escutava na sua cabeça, que a enchiam num ritmo sonoro ensurdecedor, também não ajudavam. Na sua mão uma carta. Que carta era aquela? Que poderia ela desvendar? Repousaria no seu conteúdo a causa de tamanha violência? Os seus dedos dormentes tentaram abri-la, mas nem isso. Sentia-se desfalecer. Não veio "selo". Veio só a carta. Esta carta. Seria ela um soco no estômago?
Miguel Santos Teixeira, Oeiras

#27
O despertar fora lento e doloroso. Deu instruções ao seu corpo dormente para se erguer, mas este recusava-se a obedecer. Olhou em volta. Estava deitado no chão do que parecia ser uma casa abandonada. As janelas estavam parcialmente destruídas e os tentáculos da natureza ameaçavam as indefesas paredes. As falhas no telhado pareciam feridas abertas pelos raios de sol que teimavam em iluminar um pedaço de papel perto do seu corpo. Lentamente as recordações regressavam à superfície. A carta. A revelação estava ao alcance da sua mão.
Vitor Costa, Famalicão

#28
Estranhamente a casa abandonada tornou-se acolhedora, um refúgio. Arrastou-se para um canto lentamente, dolorosamente. Encostado à parede ergueu os joelhos e rodeou-os com os braços, a carta ainda na mão, já ligeiramente amarrotada. Abriu-a. Lá dentro uma palavra: Felicidades. Fixou os caracteres elegantes - femininos? - uma e outra e outra vez. A barriga enorme começou a tremer, depois o resto do corpo. A boca de Shinokuza abriu-se e a sua garganta lançou um grito transformado numa gargalhada enquanto o papel branco caía amarfanhado no chão.
Estou livre - pensou.
Isabel Brinca, Faro

#29
Não conseguiu controlar as lágrimas. Pegou no papel e releu a mensagem de novo. Suspirou num misto de resignação e de alívio. A palavra ainda continuava lá, mas agora já não parecia tão reconfortante. A sensação de liberdade depressa cedeu lugar a uma vaga de confusão. Continuava a chorar e as suas mãos recusavam-se a largar o papel amarrotado e salpicado de água. Pensou na ironia do destino. Estava a afogar a ordem de libertação nas suas próprias lágrimas. De repente ouviu o som de passos. Levantou-se num ímpeto e afastou-se para um canto. A cadência era cada vez mais curta e audível. Viu uma sombra recortada pelo sol junto à porta. Engoliu em seco e aguardou.
Vitor Costa, Famalicão

#30
Ouviu a porta abrir-se. O som das dobradiças enferrujadas e o ranger do movimento ecoaram pelo espaço. A luz do exterior banhou a entrada recortando figuras por entre os móveis semi-desfeitos, filtrada pelo pó de anos de abandono. Contra luz viu um homem alto, magro. O estranho ficou à porta piscando os olhos para se habituar à escuridão. Ou seria surpresa por o encontrar ali? Dificilmente se poderia esperar encontrar um lutador de sumo numa casa perdida no sul do Brasil! Perguntou-lhe quem era e o que fazia ali num japonês perfeito, mas com algum sotaque. Devolveu-lhe a pergunta e aguardou. O estranho sorriu, entrou na sala, limpou o tampo de uma cadeira e sentou-se. Em seguida retirou do bolso interior do seu casaco uma garrafinha de metal e bebeu um golo. Depois esticou o braço e ofereceu-lha. Inicialmente, olhou-a, desconfiado, mas depois aceitou a oferta do estranho. Foi então...
Patrícia Loureiro, Lisboa

#31
…que o reconheceu. O impacto da revelação fora brutal e demorou alguns segundos a recompor-se. Esfregou os olhos, incrédulo e desconfiado. Não pode ser, pensou. Aproximou-se e observou-o. Aquele rosto aquilino, os olhos em forma de amêndoa, o nariz pontiagudo e o mesmo olhar vigilante e indecifrável de sempre. Um nome formou-se na sua mente. Sakamura. Outrora fora o seu melhor amigo até ao dia em que conheceram a mulher que destruiria o juramento feito desde a infância. A amizade cedera lugar à mentira, ao ciúme e à traição. Começava agora a encaixar as peças para completar o puzzle do seu rapto. Tudo fazia sentido. A carta, a estranha mensagem, a morte de Ohayou. Estremeceu perante este último pensamento. O seu olhar fulminante apontou para o culpado. Estava frente a frente com o assassino de Ohayou.
Vitor Costa, Famalicão 

#32
Sakamura disse: em tempos traíste. Nunca soube porquê. Mas não esqueci. Vais ser incriminado por um assassinato que não cometeste. E ficarás sem entender muito do que te aconteceu. Esta será a minha segunda vingança. A melhor delas, até. Depois, voltaremos a ser amigos, sem dúvida.
Até breve.
Gonçalo M. Tavares

Come.



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To Iceland.



To Barça.


Angels In America.



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Angels In America (2003), de Mike Nichols.

#2



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in Mad Men, de Matthew Weiner

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